Conto Curioso


Há muitos e muitos anos, numa terra distante, havia um vilarejo esquecido, com alguns mistérios adormecidos e muitas histórias não contadas. Por lá, poucos forasteiros passavam; não fazia parte da rota de mercado, estava mais para rota de fuga – nem sempre foi assim. Entre os habitantes desse lugar remoto, havia dois irmãos queridos por seus conterrâneos, dois jovens que tornavam a vida naquele lugar mais animada e agradável. Ambos eram filhos dedicados, que ajudavam seu pai nos afazeres do campo, irmãos abnegados, que estavam sempre dispostos a cuidar dos menores, protegê-los. Nessa família, havia, ao total, cinco filhos, os dois mais velhos, uma menina – a do meio –, um que tardiamente iniciava a falar, outro que ainda era de colo – um bebê. Assim, esses menores estavam sempre com a mãe. E a filha, Dora, a qual fazia questão de ajudar a cuidá-los, contribuía com a mãe nos afazeres domésticos.
Cris era o irmão extrovertido, dinâmico. Sabia sempre de tudo sobre todos. À época da morte do avô materno, já há algum tempo, Cris fora sozinho e escondido à casa do falecido. Enquanto todos se preocupavam em providenciar o velório, ele inspecionava cada canto da casa. Abriu cada porta, levantou cada colchão. No quarto do avô, ao abrir uma das portas do roupeiro, encontrou um baú. Dentro do baú, encontrou uma capa. Nunca a tinha visto, sobre ela seu avô nunca havia falado: era uma capa secreta. Cris olhou entusiasmado para aquilo e, desconfiado, se perguntava: “por que vovô a guarda tão bem? para que a usa?”. Foi até o espelho para ver como ficaria com a tal capa. Assustou-se. Espantadamente se deu conta: sumira. Aquela era uma capa de invisibilidade. Levou-a embora. O que ele demoraria a saber é que sua avó dera falta da capa.
Rui era o irmão introvertido, distraído. Seus pensamentos eram sempre distantes. Mas ele escrevia bons textos e as pessoas da vila gostavam muito de lê-los. Rui considerava sua vida sem graça, esse era o motivo de ele sempre imaginar estar em outros lugares e escrevia sobre isso. Por vezes ele andava em reinos distantes, salvando donzelas indefesas de bruxas malévolas; outras vezes era o cavaleiro destemido que acabava com o inimigo mais forte em batalhas sangrentas, recebendo a aprovação de todos, tornando-se o mais admirado pelo rei. Mas, ultimamente, ele não tinha vontade de escrever, não conseguia sair de seu mundo, do qual ele não gostava, não conseguia imaginar algo que lhe fizesse bem; seus dragões estavam mortos, todas as princesas tinham envelhecido. O único lugar em que Rui imaginava estar era num buraco negro bem fundo, num desfiladeiro sem fim, onde ele caía e caía e se perdia para sempre. Ele não queria escrever sobre isso, ele não queria escrever sobre nada. Ele queria ir embora e nunca mais voltar.
Quando Cris percebeu a tristeza de seu irmão, sabendo que Rui gostava de uma aventura, como ele, resolveu convidá-lo a espionar um morador da vila – Cris acreditava que com a capa de invisibilidade eles estariam seguros. Esse morador vivia recluso, solitário, e era sempre motivo de conversa entre os habitantes do local. A esperança de Cris era de que Rui se empolgasse com o prazer que só uma façanha inesperada pode proporcionar, e voltasse a escrever. Rui aceitou a proposta, se animou com o perigo – “por sorte o homem misterioso teria algum segredo que fizesse valer a pena arriscar”. Não acreditou quando vira a capa de invisibilidade e reclamou a Cris por não ter lhe falado sobre ela antes.
Escondidos embaixo da capa, tarde da noite, enquanto todos dormiam, foram à casa do enigmático vizinho. A porta não estava trancada, por isso entraram facilmente. Passaram pela cozinha e seguiram pela sala: procuravam algo diferente, algo que pudesse comprovar que aquele homem acabara naquela vila para fugir de uma realidade que ele não contara para ninguém porque a queria esquecer, que ele tinha algum segredo a esconder, comprovando a desconfiança de todos – quem sabe um assassino sanguinário, um ladrão ordinário? “Ao certo um falsário”. A sala dava para um corredor extenso cheio de portas, as quais os irmãos acreditavam serem dos quartos. Caminharam lenta e cuidadosamente por esse corredor, todas as portas estavam fechadas e eles não as abriam porque uma daquelas ao certo era a porta do quarto do homem, não queriam acordá-lo. No final do corredor, na extremidade oposta à sala, havia uma porta entreaberta e foi para lá que eles se dirigiram. Espiaram para certificar se o dono da casa não estava ali, como não havia ninguém, entraram. Não acreditaram no que viram: vidros de todos os tamanhos com líquidos de variadas cores e procedências, conhecidos ingredientes de poções mágicas: lágrima de sereia, pó de chifre de unicórnio, coração de dragão desidratado e outros. Esse homem era um bruxo! E, pela quantidade de material de magia que ele tinha (alguns muito difíceis de se conseguir, raríssimos), pode-se afirmar: um bruxo muito poderoso! Observaram cada detalhe, exploraram bem o ambiente. Empolgados com a descoberta sobre o vizinho e com a quantidade de coisas que eles sequer haviam imaginado ter nas mãos, descuidaram-se da presença do homem ali na casa – queriam ver tudo, ler cada receita, saber cada antídoto. Cris, deixou a capa de invisibilidade com Rui e começou a caminhar livremente naquele aposento, analisando tudo o quanto podia. Ao encontrar um ingrediente que sempre duvidou existir, deu um grito para Rui, que estava a certa distância, lendo um manual de encantamentos amorosos:
― Não acredito! Cinza de fênix! Você tem que ver isso!
Rui percebeu o tom alto da voz do irmão e se assustou, aquilo poderia ter acordado o bruxo. Assim que se deu conta disso, ouviu o ranger da porta do quarto ao lado, o homem estava a caminho. Cris estremeceu de pavor e deixou escapar de sua mão o vidro com as cinzas, que se espatifou no chão. Rui então correu até seu irmão e cobriu-os com a capa. No instante seguinte o homem estava ali, em frente a eles. Se não fosse a capa, teriam sido certamente flagrados. O bruxo não os via, mas sentia que havia algo errado. Olhava para todos os lados desconfiadamente, até que viu as cinzas de fênix espalhadas no chão. Agora tinha certeza, alguém esteve ali, alguém sabia seu segredo. Os dois irmãos, apavorados, esperaram o homem sair dali. Acreditaram que ele havia voltado para seu quarto e foram embora, apreensivos. O bruxo que, diferente do que eles pensavam, não voltara a dormir, observava, escondido, as pegadas que se faziam na relva enquanto os irmãos afastavam-se. O bruxo os seguiu sorrateiramente até descobrir, por fim, quem estivera em sua casa. Naquela mesma noite sequestrou Dora. Sabia do carinho que os dois tinham pela menina, sabia que através dela os atrairia para onde desejasse, sabia que eles não arriscariam a vida da irmã, que seriam discretos para evitar que qualquer mal acontecesse a ela, que não comentariam com ninguém o que ocorrera, nem seus anseios. Então ele poderia acabar com esses bisbilhoteiros sem levantar suspeitas. Vingar-se. Levou Dora para sua casa. Tinha certeza de que os meninos saberiam onde procurá-la quando dessem sua falta.
Amanheceu e, como de costume, a mãe foi para a cozinha preparar o café da manhã para a família. O pai se levantou, passou no quarto dos filhos maiores para acordá-los, pois os três seguiriam para a lavoura, e, quando se dirigiu para o quarto dos menores, não vendo Dora, voltou-se calmamente para a mulher, perguntando da menina. A mulher, assustada, deixou seus afazeres e seguiu à procura da filha dentro de casa. Já estava desesperada, gritando pela filha: “Dora! Dora! Meu Deus, onde essa menina se meteu?”. Foi então que os dois irmãos se olharam, olhar aterrorizado, corpo paralisado. Naquele momento, ambos entenderam-se perfeitamente sem dizer uma palavra: “Só há um lugar onde Dora pode estar e só nós podemos resolver”. Não queriam contar os fatos a seus pais. Não queriam que eles também corressem perigo, como Dora, por causa de sua atitude. Eles conversariam com o bruxo, pediriam desculpas, prometeriam manter segredo; ele haveria de perdoá-los.
Para ganhar tempo, Cris e Rui disseram aos pais que Dora havia falado, no dia anterior, que acordaria bem cedo para colher flores no campo e que com certeza ela estaria bem. Os pais ficaram mais calmos após as palavras dos filhos. Estes tomaram café rapidamente e saíram, dizendo que buscariam a irmã e que em breve estariam em casa. Os dois não sabiam, mas, desde que Cris pegara a capa de invisibilidade na casa da avó, ela os vigiava. Sabia que eles tinham sob seu poder algo muito importante e que isso poderia colocá-los em perigo. Os avós dos meninos eram magos poderosos, que, na hierarquia local, tinham posição de destaque, exercendo influência sob os seres da floresta. Na floresta, havia muitos seres mágicos e uma série deles ajudava a mulher a vigiar seus netos, principalmente as fadinhas vagalume: pequenos seres que brilhavam a noite, mas eram imperceptíveis durante o dia.
Essas fadinhas sabiam de tudo que ocorria, não interagiam com os moradores do vilarejo, mas os observavam e levavam todas as informações para a Maga, responsável por cuidar dos seres que ali habitavam, do vilarejo ou não. A Maga sabia do Bruxo e o mantinha sob vigilância extrema. Desde a morte de seu marido ela esperava o momento certo para sua vingança. O Bruxo a menosprezava, não acreditava em seus poderes, considerava que a morte de seu marido fosse o suficiente para amedrontá-la e torná-la submissa; e ela permitia que ele pensasse assim. Na verdade, ela fazia de tudo para que ele a achasse fraca; mas ela estava juntando forças para combatê-lo. Alguns seres da floresta haviam se deixado subjugar pelos poderes do Bruxo; entretanto, a maioria se preparava para a revanche da Maga. Ela soube do que acontecia durante todo o tempo: sabia dos planos do Bruxo de dominar o vilarejo, sabia quando Cris e Rui foram à casa do homem, sabia o que se passava com Dora naquele exato momento. Porém, antes de qualquer atitude, precisava analisar a situação, ponderar cada detalhe, pensar como agir, pois sabia que aquele Bruxo, que agia discretamente, era extremamente malévolo e poderia acabar com a vida, não só de Dora, mas de toda sua família.
Os irmãos haviam pensado melhor e traçado um plano. Deram-se conta de que o Bruxo não era uma pessoa em quem podiam confiar; era perigoso, escorregadio. Já na floresta, em direção à casa do malévolo, se cobriram com a capa de invisibilidade; o plano era tirar Dora da casa do Bruxo sem que ele percebesse e, quando ela estivesse em segurança, dar um fim nele. Na noite anterior, viram que ele tinha um veneno fortíssimo: suor de quimera, e iriam usar esse veneno para matá-lo. Entraram na casa, andaram por todos os cômodos, não viam nem o Bruxo nem Dora, havia alguma coisa errada. Na sala de poções, pegaram o suor de quimera e seguiram à procura da irmã. Foi então que a viram, no aposento particular do Bruxo, amordaçada. Ela estava transtornada, não sabia o que pensar, não entendia. Quando eles começaram a soltá-la, o Bruxo, inesperadamente, tirou a capa deles e colocou em si mesmo: agora eles estavam vulneráveis: no ambiente do outro, sem o ver. Ele faria o que bem entendesse, poderia sumir com os três e ninguém saberia. Soltaram Dora, não sabiam como se livrar do Bruxo, só pensavam em sair dali, mas não conseguiam: a cada porta, cada janela que eles se aproximavam: BOOOOM! – batia-se com força. O Bruxo as fechava sem ser visto, os estava torturando; para eles era o fim, não tinham o que fazer. A menina começou a chorar.
Então surgiu uma figura feminina na única porta que ainda não havia sido fechada. Era a Maga! Com um comando dela, a capa de invisibilidade, que sempre lhe pertencera, deixou o corpo do Bruxo. Cris, Rui e Dora não entendiam como sua avó, um ser tão frágil, de repente se mostrava tão forte. A Maga e o Bruxo iniciaram uma batalha mágica. Feitiços eram jogados de lá para cá e de cá para lá. A Avó-Maga estava quase sem forças, o Bruxo era muito forte. Rui, abraçado em Dora, a protegia para que nada daquilo a atingisse. Cris lembrou-se do suor de quimera que estava em seu bolso; havia lido todo o manual de envenenamento, sabia o que fazer. Jogou o vidro em direção à avó e disse a ela:
― Suor de quimera! Sabe o que fazer?
― Com toda certeza sei!
O olhar do bruxo era de surpresa e desespero. A ponta da varinha da Maga quebrou o vidro do suor de quimera, absorvendo o ingrediente. Imediatamente ela lançou um feitiço mortal no Bruxo. Ele evaporou, morreu. Acabara aquele pesadelo. A morte do Avô-Marido-Mago havia sido vingada. Dora estava a salvo, os meninos estavam bem. Seres mágicos da floresta aglomeravam-se em frente ao local. Todos queriam ver o Bruxo morto, todos queriam certificar sua derrota. A Maga, indiscutivelmente, era a autoridade máxima. E, naquele instante, tomada de muita emoção, ela disse:
― Não usem seus poderes para seu bel prazer, não usem suas forças em benefício próprio, há algo muito maior. Há muitas forças nesse mundo, nem sempre positivas; cabe a nós optarmos. Quando soube que vocês usaram a capa de invisibilidade para bisbilhotar a vida do Bruxo, me preocupei. Vocês se arriscaram em vão, correram grande perigo sem necessidade. Agora sei que seus corações são bons, mas sofri pela dúvida. Vocês têm muito para dar a esse mundo, mas precisam ter consciência de seus atos e refletir sobre suas decisões.
Os irmãos ouviram atentamente, se comprometeram a manter os últimos fatos em segredo e a analisar melhor seus atos antes de tomar qualquer atitude; a irmã fez parte disso. Retornaram para casa. Rui nunca mais quis ir embora, era de uma linhagem de magos muito poderosa e por isso encheu sua alma de inspiração. O vilarejo, que tinha a negatividade predominando sobre ele por causa de feitiço lançado pelo bruxo, viu-se livre disso com a morte de quem o lançou e voltou a ser movimentado; todos os comerciantes queriam passar por ali; o lugar voltou a fazer parte da rota de comércio. A paz e a alegria voltaram a dominar. Todos viveram felizes para sempre.

Comentários

Carla Soares disse…
Parabéns, amiga. Conto de fadas muito bem escrito. Beijo!