Memórias


Fecho os olhos, vejo uma menina de pouca idade, uma criança. Ela, ansiosa, espera seu pai chegar do trabalho, pois, todos os dias, ele traz um pirulito para ela. Só ela recebe esse mimo diário de seu pai e isso a faz sentir-se especial.

Olhos fechados, vejo uma menina arteira, já em idade escolar. Ela brinca de pega-pega no colégio e acaba se chocando de cabeça com um menino que, como ela, corria. As marcas, as cicatrizes que ela tem pelo corpo deixam claro que ela gosta é de brincadeira de menino.

Sem abrir os olhos, vejo, então, uma jovem. Aluna nota dez, ela é a melhor da turma por anos consecutivos e isso a deixa segura de si. Mas, nesse ano, é diferente, há um colega que a ameaça e eles disputam o favoritismo a cada resultado, a cada avaliação entregue.

Ainda de olhos fechados, vejo uma adulta em formação, em crise, rompendo com padrões nos quais deveria se enquadrar. Acaba a relação com o primeiro namorado, aquele que dela iria cuidar. Apesar do modelo tentador, dos benefícios financeiros, não é ali que ela quer estar.

Sem precisar abrir os olhos, vejo uma mulher. Ela assiste a um filme e chora; as lágrimas que rolam por sua face são tão fugazes quanto suas certezas. Essa mulher parece tão especial e arteira quanto aquelas meninas, tão segura quanto aquela jovem, tão em crise quanto a adulta em formação.

Assistindo a outra cena do filme, ela ri um riso sincero e inesperado. O paradoxo de sua boca macia e seus dentes afiados é como o esforço que faz para manter a esperança neste mundo embrutecido.

A mulher, agora, olha o relógio. O tempo não para, da mesma forma ela tem a impressão de nunca parar. Assim como trabalham os ponteiros do relógio, incessantemente, essa mulher se desfaz e se refaz a cada instante.

Ela resolve dormir. Deita-se com a intenção de um sono tranquilo e revigorante. Ela deseja ter bons motivos para sair da cama no dia seguinte, pois, como o relógio precisa de pilhas para funcionar, ela precisa de sonhos para continuar.

Comentários

Leandro Coimbra disse…
O texto mais lindo que escreveste. Sem mais comentários.
Karina Santana disse…
Obrigada Leandro. Estava fazendo um curso na época em que escrevi esse texto. Tanto tempo que não escrevo, acho que enferrujei, mas tenho vontade de recomeçar. Não sou uma escritora muito talentosa, mas me faz bem colocar minhas ideias no "papel". Abraço.