João era um menino com muitas
responsabilidades, primogênito de uma família com três filhos, era também o
único homem. Apesar de morar numa cidade vizinha à capital, residia em zona
rural e a renda familiar resultava da venda dos produtos que produziam. Ajudava seu pai nos afazeres do dia a dia; ou
melhor, fazia o que devia ser feito por seu pai, o qual, viciado em jogo e em
álcool (deixava grandes quantias de dinheiro nas apostas das carreiras de
cavalo), muitas vezes não saía da cama de manhã cedo para a lida. A família vendia
leite; naquela época, para isso, passava-se de casa em casa com os tambos de
leite na carroça. De vez em quando, o pai acompanhava João, dormindo enquanto o
filho fazia todo o trabalho, mas, na maioria das vezes, João ia sozinho. Como
diz uma de suas irmãs: “Ele era tratado como criança e tinha responsabilidade
de adulto”.
João não recebia carinho de seu pai,
que, pelo contrário, era um homem amargo e parecia ter prazer em maltratar seu
filho. Certa vez, o homem disse ao menino que fosse ao armazém (armazém mesmo,
na época não existia mercado) e trouxesse uma dezena de itens - não havia uma
lista, João tinha de lembrar-se de cabeça do que tinha de comprar. O armazém da
região não era perto e o menino fora a cavalo. Acontece que quando retornara,
ele no cavalo, foi arrancado a pauladas. Seu pai, ansioso pela cachaça, foi remexer
nas sacolas e não a encontrou (para João a cachaça poderia ser insignificante a
ponto de esquecer-se de comprá-la – todos os outros itens estavam ali –, porém,
para seu pai, era o mais importante). Depois de bater no menino, o mandou de
volta ao armazém, dessa vez a pé e com os minutos marcados no relógio, pois se
passasse do tempo estipulado, levaria outra surra daquelas. João chegou em
casa, como ele mesmo diz, com um palmo de língua para fora, não apanhou dessa
vez, o homem estava feliz com sua cachaça. Mas, João apanhava muito, pelos
motivos mais injustos, pelas razões mais absurdas. O pai sempre arranjava um
jeito de aplacar sua raiva sobre o filho. Assim, João se tornara um jovem
revoltado, que preferia estar na casa de estranhos do que na casa do pai, era
melhor tratado na casa dos outros do que em seu próprio lar.
Na escola, João tinha o apelido de Asa
Negra – no lugar onde extravasava sua revolta, suas ações o marcavam como
aluno-problema. Em seu tempo livre, ele maltratava animais pelo campo. Exemplo
disso é a história que conta, hoje com pesar, do gatinho que ele jogou no
arroio: João amarrou a perna do gato numa cordinha e o jogou na água; o bichano
se debatia, tentando chegar à margem; quando João via que ele estava quase
conseguindo, o retirava para, depois que ele pegasse fôlego, o jogar novamente.
João conta que o pobre bicho olhava com desespero para ele, como que implorando
que ele parasse, sabendo de sua impotência frente àquele que o dominava. A
angústia que João via nos olhos do gato não era outra senão a dele mesmo frente
ao poder autoritário e abusivo de seu pai.
Já homem feito, João presenciou uma
cena que havia prometido nunca mais deixar se repetir: a mãe de João, ao
interceder com seu marido, que batia numa das filhas, passou a ser agredida. O
filho não teve dúvidas, pegou um banquinho que havia a seu lado e foi para cima
do pai, dizendo que não permitiria mais aquele tipo de coisa; agora ele tinha
tamanho para enfrentar seu pai. O homem teve de largar a mulher, mas João teve
de sair de casa. Naquele dia, por não permitir que seu pai batesse em sua mãe,
João fora expulso de casa. Ele passou a viver numa peça nos fundos, privado da
convivência com a família, e a se alimentar com os pratos de comida que sua mãe lhe
levava escondido. A mãe de João era amável e boa; porém, esposa submissa,
escamoteava como podia os mandos do marido.
Nessa época, João revoltara-se de vez.
Ele não tinha um norte, estava difícil encontrar motivo que o fizesse encarar a
realidade com alegria, faltava-lhe amor no coração e paz de espírito. Ele
queria viver a escuridão ao extremo, queria perder-se, estava desiludido,
arrasado. De que adiantara ser filho trabalhador, ajudar seu pai nos trabalhos
diários para que este pudesse fazer o que bem entendesse? De que adiantara defender
sua mãe e suas irmãs se elas não poderiam fazer nada em relação a esse homem
que se dizia seu pai? “Por que meu pai me odeia tanto!? O que eu lhe fiz!?” O
pobre homem que então se tornara caía em prantos e se desesperava, não
conseguia encontrar respostas para suas perguntas. A vida era ingrata.
João era, agora, um homem da noite.
Seus companheiros? Uma adaga e muitos copos de cachaça. A adaga era sua
parceria predileta e ele fazia questão de exibi-la, deixando à mostra sua
disposição para o duelo. Sua vida mesmo, a que lhe refletia, era a vida
noturna, a boemia. Ali se revelava, ali se via: entre bêbados sorrindo no bar e
valentes brigando na rua. A cada briga, ele se sentia mais macho; a cada
homem que deixava caído no chão, se sentia mais forte; a cada nova ferida em
seu corpo, se sentia mais realizado. Sim, João se envolvia nessas brigas para
ferir-se fisicamente, só assim lhe fazia sentido a dor que sentia e não
conseguia explicar, só assim compreenderia os machucados que sentia mas não via.
O álcool era uma mera tentativa de alívio desse sofrimento que não se ia nem
quando as feridas do corpo cicatrizavam.
Bêbado e ferido. Assim João chegava ao
quartinho destinado a ele e assim dormia. E isso aconteceu por algum tempo. Até
que tudo mudou para João. Ao acordar, no dia seguinte ao de uma de suas tantas
bebedeiras, ele vê, assustado, sua mãe sentada na beirada da cama. A mulher
estava sentada ali há horas, esperando que ele acordasse. Enquanto o observava
dormir, pensava naquele menino que um dia ele havia sido, pensava em todos os
abraços que queria ter dado nele e não deu, em todos os cafunés que queria ter
feito e não fez. Pensava em como gostaria de ter participado mais na vida
daquele ser que ela tanto amava. Então ele acordou. Viu a mãe, circulou o olhar
por todo o ambiente para ver se havia outro elemento inesperado no quarto, não
encontrando nada além da mulher. Voltou o olhar para a mãe. Ela tinha em suas
mãos a adaga suja de sangue, o que, ao perceber, lhe impressionara. Então a mãe
perguntou:
― Você sabe o que é isso? ― sua voz era branda; seu olhar, firme.
― É minha adaga.
― Isso é o inferno! ― a voz e o olhar demonstrando raiva ―
Isso é o inferno em que eu vivo todas as noites quando percebo você sair. É o
inferno de não saber se você vai voltar. ― a
voz embarga ― O inferno de pensar meu filho caído morto numa sarjeta. O
inferno de imaginar te perder pra sempre!
― Mas, mãe...
― Meu filho ― o olhar úmido das lágrimas que ela segurava e a voz firme ―, me
prometa, se você tem algum amor por mim, me prometa que você vai largar essa
adaga. Me prometa que você vai largar essa vida sem rumo. Que vai voltar a ser
um homem direito e a me dar orgulho de ser sua mãe! Você é a única esperança
que eu tenho na vida! Seu pai bebe desse jeito. Você vai seguir o mesmo
caminho!?
― Não, mãe. ― às lágrimas ― Vou fazer diferente. Eu lhe prometo!
Daquele dia em diante, João nunca mais
carregou sua adaga. Mudou-se para a capital, retomou os estudos, que havia deixado
de lado para trabalhar o tanto que lhe era exigido, arrumou um novo emprego, tinha
esperanças de uma vida melhor. Não largara a boemia; mas essa então se fazia de
noites inteiras a dançar. Ou em renomadas casas de dança nas zonas nobres ou em
salões de dança nos diferentes morros, João sempre dava show. Das brigas, ele
se esquivava enquanto dava; mas quando o outro insistia, ele mostrava o que
sabia. Afinal de contas, não procurava confusão, mas também não pedia arrego. João
gostava da vida que estava levando. Às vezes visitava a mãe – apesar de não ter
reatado com o pai – e a via bem. Ambas as irmãs estavam namorando bons rapazes.
A vida parecia estar seguindo bons ares.
Num domingo, João resolveu passear com
um amigo, ver o movimento, aproveitar a tarde de sol. Em meio às árvores, que
emprestavam sua sombra às famílias, aos amigos e namorados, em meio ao perfume
das flores, que davam o colorido do momento, em meio à brisa fresca que cruzava
o parque de um lado a outro, João viu uma menina que lhe chamou a atenção. Ela
fora ao parque com seus pais, mas, naquele instante, estava distante deles. A
chegar mais perto, João olhou para a menina que lhe encantara e disse:
― Com essa, eu até casava!
E casou! Primeiro, foram anos de
amizade, por condição do pai da moça, pois ela era muito nova. Quando o namoro
tornou-se oficial, João a levou para conhecer sua família. Foi então que fez as
pazes com seu pai. Esse relacionamento fez bem a ele, pois a família dela lhe
proporcionou a relação familiar que ele nunca tivera. Depois de mais alguns
anos, João estava casado. Em seguida, sua esposa engravidou. Infelizmente, ela
ficou doente, devido à caxumba, teve problemas na gravidez e perdeu o bebê. O
casal sofrera muito com a perda de seu primeiro filho: o filho homem. Passado
algum tempo, a esposa de João engravidara de novo. Nasceu sua primeira filha.
Após alguns anos, nasceu a segunda menina. Ambas as filhas tinham problemas de
saúde cujo tratamento tinha de ser contínuo. A esposa de João era dedicada,
cuidava com carinho do marido, das filhas, era dona-de-casa caprichosa, se
tornara uma mulher forte ao lado de João. Mesmo assim não era fácil para ela, não
era fácil para o casal tamanha responsabilidade; não era fácil para João, o
provedor, dar conta de suas obrigações. Havia épocas em que ele trabalhava em
mais de um emprego para poder suprir o que sua família precisava: trabalhador
honesto e incansável, ele seguia. João teve mais duas filhas.
Com a quarta filha teve o conflito de
gerações: por ser a caçula, ela sentia a pressão de ser a última esperança do
filho homem que não veio e não sabia como reagir em relação ao pai, que tanto
desejava aquele filho. Por ser mulher de uma nova geração, e por isso bem
diferente do exemplo de mulher que João tivera (sua mãe), queria o espaço – que
não tinha – para opinar e mostrar suas ideias. Achava que, se nascesse homem,
seu pai lhe daria a liberdade que desejava. Ele, por sua vez, sentia a pressão de criar quatro mulheres (o que, nesse mundo machista,
realmente não era fácil), e acabava sendo superprotetor, o que ela entendia
como opressor. Ela o questionava, o contrariava ― isso o deixava incomodado, o
perturbava, ele sentia sua autoridade diminuída. João não fazia isso com seu
pai e, quando o fez, foi posto para fora de casa. Não queria fazer isso com sua
filha. Queria que ela simplesmente parasse!
Foi
difícil para a filha entender o ponto de vista do pai, entender que ele lhe desejava
o melhor, que tinha medo dos perigos que o mundo apresentaria e dos males que
isso traria, mas ela compreendeu e queria que ele também compreendesse que ela
queria trilhar seu próprio caminho, ter suas experiências, suas aprendizagens,
apesar do inevitável sofrimento que isso traria. João era
um homem sofrido e, por isso, calejado, sua filha sabia que teria de tomar a iniciativa
para melhorar essa relação. Então, resolveu que diria aos pais que os amava, a
cada um individualmente. O modelo familiar que João e sua esposa conheciam e recriaram
não incluía ficar repetindo diariamente aos filhos que os amava. João nunca
falara isso às filhas, preferia mostrar através de suas ações. Mas essa filha
diria aos dois o quanto os amava. Começou pela mãe, a relação delas era mais
amena, então foi fácil, ficou feliz com seu feito. Com João a situação seria
mais delicada, não poderia soar cínico, então algumas conversas se fariam
necessárias antes do desfecho almejado.
Certo domingo, após o almoço, ela
levou a conversa para o assunto relação
entre pais e filhos. Logo falavam sobre as relações de sua família. Por
conseguinte, sobre a relação dos dois:
― Pai, – insegura, tateando as palavras – parece
que você não me ama como às outras filhas, me sinto a ovelha negra da família.
― Os pais
amam da mesma forma todos os filhos, não tem como haver diferença nesse
sentimento. – calmamente ele explicava
– O que acontece é que pode se ter afinidade mais com um filho do que com
outro. O amor é o mesmo.
Ela sabia
que o pai estava sendo sincero e, tendo certeza de que era amada, continuou a
conversa até que chegasse o momento certo em que tivesse a coragem de dizer ao
pai que o amava. Então, sentiu esse instante e falou com toda sua convicção:
― Pai, você é um exemplo pra mim. Eu te amo!
João,
agora velho, começou a chorar como um menino. Soluçava fortemente, tão
fortemente que sua esposa veio de outro cômodo da casa para ver o que
acontecia. Ele, como a filha, não tinha certeza do amor do outro. Aquela vivência
conturbada que tinham os deixava em dúvida quanto ao sentimento alheio. Todas suas
inseguranças, dele e dela, se refletiam e se mostravam através daquela relação.
Ambos eram inseguros e frágeis e carregavam pesos em relação a seus pais. Mas,
estava claro: ela era uma filha amada; ele, um pai amado. Apesar das
dificuldades com o seu, ele vencera como pai: era um exemplo.
A família,
cujo patriarca é João, é uma família tradicional, que se reinventa quando
preciso; é unida, uns cuidam dos outros. É preciso tempo e vontade para o
entendimento, é necessário diálogo e amor. João e sua esposa são pais
exemplares. Suas filhas são motivo de orgulho. João é um grande homem. Alguém para se chamar de herói.
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